Leia meu artigo publicado hoje no Jornal O
Estado de S. Paulo, 14 de abril de 2016
DEPOIS DA NOVA REPÚBLICA
Brasileiros, começamos hoje a viver a Nova
República. Deixemos para trás tudo o que nos separa e trabalhemos sem descanso
para recuperar os anos perdidos na ilusão e no confronto estéril. Estou certo
de que não nos faltará a benevolência de Deus. Tancredo Neves, discurso de
posse na presidência da República, lido pelo vice-presidente José Sarney em
15/03/1985. O fecho do discurso de Tancredo consagrou a denominação de uma nova
etapa da nossa história: a Nova República. O desenlace do atual processo de
impeachment marcará o fim dessa etapa. Desde o ano passado vivemos o pior de
dois mundos: a ordem existente agoniza e nada ainda tomou seu lugar. Uma fase
especialmente mórbida, que põe a mostra tudo o que ficou de pior na nossa
sociedade. A Nova República não chegou a materializar a utopia desenhada por Tancredo,
mas trouxe avanços importantes. Na política, a tutela militar deu lugar à
participação eleitoral e social das massas populares, com plena liberdade de
organização e manifestação e prevalência do Estado de Direito. O
presidencialismo de coalizão – arranjo em que o presidente da República obtém
maioria no Congresso mediante distribuição de cargos e verbas orçamentárias -
garantiu uma governabilidade problemática, mas efetiva. Na economia, vencemos a super inflação e a insolvência externa, depois de sofrer seus piores efeitos. A
consolidação de novas fronteira s agrícolas coincidiu com a modernização
produtiva: o Brasil conta hoje com um agronegócio altamente competitivo. A
participação do petróleo importado no consumo total desabou de 80% em 1980 para
40% em 2000 e 20% em 2010, eliminando antiga restrição externa ao crescimento.
A pobreza e as distâncias sociais diminuíram;
os indicadores de renda, saúde e educação melhoraram. Fundamentos de um estado
de bem-estar foram assentados com a ampliação das matrículas no ensino
fundamental, os programas de transferências de renda, a implantação do SUS e do
FAT/Seguro Desemprego.
Na coluna dos passivos, o Brasil não alcançou,
nesse período, condições de crescimento de longo prazo. Em contraste com 260%
de expansão entre 1950 e 1980, o PIB per capita aumentou 50% nas três últimas
décadas. Até meados dos noventa, a super inflação e o desequilíbrio externo
travaram a economia. Em seguida, o receio da perda da estabilidade conquistada
pelo Plano Real e as sucessivas crises financeiras internacionais retardaram o
impulso expansivo.
A grande oportunidade para o desenvolvimento
sustentado foi desperdiçada, mesmo, pelo governo Lula. A bonança externa do
período, decorrente elevação dos preços das exportações de alimentos e matérias
primas, foi dissipada pelos aumentos exponenciais da importação de bens de
consumo e do turismo externo, em vez de fortalecer a competitividade da
economia. Isso resultou de decisões erradas de política monetária e cambial,
que levaram a sobrevalorização do real ao paroxismo. A falta de investimento na
infraestrutura de energia e transportes e a elevação da carga tribut&aacut
e;ria completaram a receita perfeita para a rápida desindustrialização. O
déficit comercial de manufaturados saltou de praticamente zero em 2006 para US$
81 bilhões em 2010 e US$120 bilhões em 2014. Ah, sim, foi nesse período que se
armou a ruína da Petrobrás – loteamento, corrupção e investimentos mal feitos e
megalomaníacos.
O governo Dilma herdou os custos: taxa de
câmbio mega valorizada, déficit em conta corrente em ascensão, infraestrutura
indigente, Petrobrás arruinada. Mais ainda, a queda incessante da indústria
comprometeu o desempenho da arrecadação tributária. Os gastos públicos
permaneceram rígidos. A bonança externa acabou. Com inépcia só superada pela
teimosia, seu governo não conseguiu elevar os investimentos na infraestrutura
mediante parcerias com a área privada. Promoveu isenções tributárias caríssimas
e ineficientes. Reprimiu os preços de combustíveis e energia elétrica com fins
eleitorais, acumulando desequilíbrios nas empresas produtoras e pressões
inflacionárias. Resultado: colapso nas contas públicas e mergulho de 9,1% do
PIB per capita em dois anos, levando à perda de 3,5 milhões de empregos. As
expectativas ruins dos agentes econômicos passaram a cumprir como nunca o papel
das profecias que se auto realizam.
A perda de popularidade na esteira da crise
econômica e o isolamento autoimposto da presidente implodiram o
presidencialismo de coalizão. Um governo tíbio, adoentado, entrou em fase
terminal quando a operação Lava-Jato expôs o aparelhamento de empresas públicas
para desfrute dos donos do poder e seguidores. Mazela antiga, como se sabe, mas
que assumiu extensão e intensidade inusitadas no admirável mundo novo petista.
Esta recapitulação põe em perspectiva os
tremendos desafios do dia seguinte ao desenlace do processo de impeachment. A
Nova República acabou. A benevolência divina não nos negará a oportunidade de
erguer sobre seus escombros uma nova ordem política e econômica. Mas, como
disse Jorge Luis Borges, “até os milagres exigem pré-condições”. Para que Deus
nos ajude serão indispensáveis mudanças no sistema eleitoral e a adoção do
parlamentarismo, tornando o Legislativo mais responsável e permitindo, sem
traumas, a rápida substituição de governos ruins.
Sem truculência, mas com determinação, será
preciso por limites à pressão de corporações poderosas sobre as finanças
públicas. O patrimonialismo que grassa no setor estatal terá de ser coibido. As
políticas sociais devem ser mantidas, mas nos trilhos da eficiência e da
inovação. As condições de crescimento do país terão de ser recriadas com base
na lisura, na competência e na interação equilibrada dos agentes públicos e
privados.
Os próximos meses, sendo otimista, ainda serão
de incerteza e sacrifícios para um povo já sofrido. Virar essa página exigirá
estabelecer um mínimo de confiança do povo nas instituições democráticas. Este
é o maior desafio das lideranças políticas, sociais e intelectuais dispostas a
plantar o futuro em vez de se agarrar aos escombros do passado.
SENADOR DA REPÚBLICA, EX-PREFEITO E
EX-GOVERNADOR DE SÃO PAULO
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